O palco como trincheira: a cruz pessoal de Bono Vox aos 65 anos
Nem santo, nem farsante, o evangelho segundo o líder do U2 é uma confissão com microfone e cicatriz.
Por LockDJ
Publicado em 10/05/2025 10:01 • Atualizado 10/05/2025 10:02
Música
As notas que Bono aprendeu a cantar viraram o som da redenção (Foto: Reprodução)

Paul David Hewson não é só Bono Vox. Aos 65 anos, completados neste sábado, 10 de maio, ele se impõe como um dos últimos mitos de uma era em que a música ainda acreditava poder mudar o mundo — ou, pelo menos, conversar com ele em voz alta.

 

Um pouco dos detalhes mais íntimos sobre a vida de Bono podem ser descobertos na autobiografia Surrender: 40 músicas, uma história. O livro oferece menos um desfile de egotrips e mais um mergulho no improvável caminho de um garoto de Dublin que, com um punhado de amigos, transformou angústia em hino, trauma em arte, e palco em trincheira.

 

O livro, lançado no Brasil pela Intrínseca, é uma espécie de missa pagã cantada em 40 capítulos, cada um batizado com o nome de uma música do U2. Não é apenas sobre compor ou fazer turnês — é sobre sobreviver a elas. Bono fala da dor não elaborada pela morte da mãe, Iris, que deixou um vazio tão grande quanto a ausência de qualquer conversa sobre ela em casa.

 

Fala das cicatrizes deixadas por atentados terroristas, das ameaças do IRA, da paranoia dos bastidores, do dia em que avisaram que ele não sairia vivo de um show se insistisse em cantar sobre Luther King — e ainda assim o fez, olhos fechados.

 

Há uma certa santidade profana em Bono: ele ora de frente para os poderosos, mas com um pé nos confessionários franceses. É ali, depois de pedir perdão ao pai morto, que algo se desbloqueia — não a alma, mas a voz. Ele começa a atingir notas que antes não alcançava. Confissão como extensão da técnica vocal. Misticismo acústico.

 

A resenha alternativa de Bono também mora em seus ídolos. O punk não aparece como pose, mas como salvação. Quando viu o Clash, entendeu que o palco não era um pedestal, era uma porta. E entrou. A citação mais reveladora talvez não venha de um teólogo, mas de uma confissão impura: os Ramones foram mais importantes que Crime e Castigo. E isso diz muito sobre um artista que sempre buscou sentido mais no impacto imediato de uma batida do que em explicações racionais.

 

O U2 nunca foi exatamente uma banda “cool”, e talvez nem precise. Nunca flertou com o minimalismo afetado do indie nem com a ironia cínica do alternativo. Mas na sua missão assumidamente “não-sexy” — como lutar contra a AIDS, combater a pobreza, andar com Gates, Buffet e Mandela — há uma integridade rara. Uma persona que nunca se encaixou no molde do rockstar decadente, mesmo quando vivia os clichês: motos, tequila, e Los Angeles nos anos 80.

 

Bono, aos 65, não é nem santo nem farsante. É um sobrevivente. E isso, num mundo de descartáveis sonoros e egos infláveis, já é muito. Surrender não é sobre vitórias. É sobre resistir à tentação de calar. E cantar mesmo assim.

 

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