A música brasileira perdeu, nesta segunda-feira (8), uma de suas artistas mais singulares: Angela Ro Ro, falecida aos 75 anos, no Rio de Janeiro, após complicações de saúde que a mantinham internada desde julho. Mais do que uma cantora de voz marcante, ela foi uma compositora que atravessou décadas desafiando padrões, expondo suas fragilidades em público e transformando vivências em canções que ainda ecoam na memória afetiva do país.
Uma trajetória feita de contrastes
Nascida em 1949, no Rio de Janeiro, Angela Maria Diniz Gonsalves ganhou cedo o apelido que se tornaria sua assinatura — “Ro Ro”, em referência à rouquidão grave de sua voz. Nos anos 1970, depois de uma temporada na Europa marcada por trabalhos como garçonete e faxineira, voltou ao Brasil e rapidamente se inseriu no circuito cultural carioca.
Foi Glauber Rocha quem a apresentou ao mundo musical de forma mais contundente: em 1971, ela tocou gaita no disco Transa, de Caetano Veloso. Mas foi com o álbum de estreia, Angela Ro Ro (1979), que a artista se consagrou. Composições próprias como Gota de sangue e Amor, meu grande amor revelaram uma lírica entre o confessional e o irônico, onde a intensidade dos sentimentos se misturava à acidez de sua persona.
O impacto e a reinvenção
Nos anos 1980, lançou discos fundamentais como Só nos resta viver (1980) e Escândalo! (1981), este último batizado com música inédita de Caetano Veloso. No auge, não se intimidava em misturar drama e humor, dor e sarcasmo — sempre com autenticidade.
A década de 1990 foi de retração, mas Ro Ro nunca deixou de existir como símbolo cultural. Ao vivo – Nosso amor ao Armagedon (1993) trouxe sua presença intensa aos palcos, e, no início dos anos 2000, a guinada pessoal: abandonou vícios, perdeu peso, reorganizou sua vida e voltou a produzir. Acertei no milênio (2000) simbolizou essa nova fase, marcada por uma sinceridade ainda mais crua.
Uma artista além da música
Ro Ro não se limitou às canções. Em 2004, apresentou o talk-show Escândalo no Canal Brasil, reafirmando sua irreverência. Mais tarde, foi celebrada em projetos coletivos, como Coitadinha bem feito (2013), que reuniu artistas em regravações masculinas de seu repertório. Seu último álbum de estúdio, Selvagem (2017), mostrou que, mesmo longe dos grandes holofotes, sua arte permanecia inquieta.
O legado de uma artista sem filtros
Angela Ro Ro foi, ao mesmo tempo, poeta da vulnerabilidade e cronista das dores e prazeres da vida. Sua postura franca diante da homossexualidade, dos vícios, das relações e dos fracassos a tornou uma figura única, muitas vezes marginalizada, mas sempre verdadeira.
Sua morte encerra um ciclo, mas não apaga a marca de uma mulher que viveu e cantou sem máscaras. Angela deixa um legado que transcende canções: a coragem de ser autêntica em um cenário cultural que tantas vezes exige concessões.
Angela Ro Ro seguirá presente onde houver espaço para a música que não tem medo de ser intensa, confessional e, acima de tudo, humana.
Assista abaixo uma performance ao vivo de Amor Meu Grande Amor, um dos seus sucessos mais marcantes.