Em 24 de setembro de 1991, Nevermind irrompeu como quem abre a porta do quarto sem bater. Trinta e quatro anos depois, continua difícil descrevê-lo sem recorrer a algo físico, tipo uma pancada, tranco, empuxo. Não era só o grunge entrando no mainstream, era a sensação de que um trio de Aberdeen tinha empacotado melodia pop, ruído punk e confissão íntima no mesmo artefato.
“Smells Like Teen Spirit” virou sísmica coletiva, mas o álbum é um organismo inteiro: a fúria melódica de “Breed”, a fricção doce-ácida de “Come as You Are”, o torpor reluzente de “Lithium”, a implosão de “Drain You”, a lixa emocional de “Something in the Way”. Curtas, diretas, as canções atravessam décadas porque resolvem um paradoxo raro: gritam e assoviam ao mesmo tempo.
A capa, aquele bebê submerso perseguindo uma nota de dólar presa a um anzol, é um haicai visual sobre desejo e captura. Minimalista e incômoda, ela funciona como tese do disco: a água é o mercado; o corpo, a inocência; o anzol, a promessa. De tão icônica, a imagem quase sobrepõe a música. Quase. Porque, ao apertar o play, o que volta é a textura. Guitarras saturadas que respiram entre os golpes, baixo com papel condutor, bateria que bate como máquinas de fábrica e, acima, uma voz que não “canta bonito”, informa um estado.
1991 era um corredor em transição. Guerra Fria no desfecho, Guerra do Golfo na TV, MTV no auge, o CD engolindo fitas, hair metal perdendo verniz, college radio costurando subterrâneos. O mainstream ainda acreditava na coreografia do excesso, e Nevermind ofereceu o contrato do incômodo. Refrão gigante, sim, mas com nervo exposto. Produção polida (Butch Vig, Nirvana) que não higieniza o erro, apenas o acentua. Não era uma ruptura “pura”, era uma colagem de tradição (Beatles, Pixies, Stooges) convertida em nova gramática. O mundo, pronto ou não, aprendeu o vocabulário.
O tempo fez seu trabalho e Nevermind ganhou novas molduras, com box sets, remasterizações, redescobertas de tom e take. Entre celebrações, controvérsias e leituras sociológicas, o disco permanece utilitário. Jovens ainda o usam para nomear turbulências sem nome, veteranos o reabrem para lembrar que a música pode ser curta, barulhenta e, ainda assim, comunicativa. A suposta “fórmula”, verso contido, refrão detonado, não explica nada sem a economia de ideias que move cada faixa: não há gordura, não há virtuosismo em exibição, há decupagem de impulso.
Ouvido hoje, Nevermind não envelheceu por falta de referências, mas por excesso delas. Está em todo lugar. De playlists nostálgicas a bandas que nunca pisaram num porão úmido, o disco se tornou sintaxe. E, mesmo assim, quando “Teen Spirit” cai, ainda há um segundo de suspensão, um brilho que antecede a explosão, o estalo de fósforo. É o sinal de que o álbum sobrevive onde interessa, exatamente na mecânica do corpo.
Talvez por isso aquela capa siga nos encarando. O bebê não conta as datas, quem envelhece somos nós. E toda vez que olhamos o anzol, perguntamos o que estamos perseguindo agora, se um som, um lugar, um alívio. Nevermind responde com o costumeiro ombro erguido e a guitarrada seguinte. Ainda funciona. Ainda dói. Ainda liberta.