Pluribus parte de uma ideia que parece simples, e por isso mesmo é perigosa. E se o mundo finalmente encontrasse um modo de acabar com a fricção humana? Nada de ódio, nada de conflito, nada de ruído. Só uma humanidade alinhada, gentil, cooperativa… e estranhamente vazia. Vince Gilligan (o arquiteto de Breaking Bad e Better Call Saul) usa esse “milagre” como anzol para uma série que não está interessada em caçar monstros, mas em radiografar um desejo contemporâneo, que é a vontade de viver sem atrito, mesmo que isso signifique existir sem a própria essência.
No centro da trama, Rhea Seehorn interpreta Carol Sturka, uma autora de romantasy que, por razões ainda não totalmente claras, permanece “inteira” enquanto quase todos sucumbem a um fenômeno de mente coletiva (a tal “Joining”). O que seria um plot clássico de invasão vira uma tese audiovisual. Quando todo mundo é “bom”, o que sobra do humano? A pergunta é tanto filosófica quanto política, e Pluribus faz questão de não responder com facilidade, preferindo deixar o incômodo crescer devagar, como ferrugem.
A engenharia do desconforto: quando o ritmo é uma arma
Um dos acertos mais ousados da série é assumir um ritmo deliberado, quase teimoso. Em vez de acelerar para a explicação, Pluribus investe em cenas em que o terror nasce de pequenos consensos, como sorrisos prolongados, frases reconfortantes demais, acolhimento sem nuance. O que o show chama de paz parece, em muitos momentos, apenas uma supressão bem educada do conflito.
Esse “slow burn” não é só estilo, é argumento. A série sugere que a mente coletiva não vence pelo choque, mas, sim, pelo cansaço. A vida vira um corredor sem portas. Você pode até correr, mas não há para onde ir.
A atuação de Rhea Seehorn: raiva como último idioma
Seehorn sustenta Pluribus com uma interpretação que se recusa a pedir simpatia. Carol não é heroína carismática, ela é frequentemente amarga, defensiva, atravessada por luto e irritação. E é justamente aí que a série ganha corpo. A raiva dela funciona como sinal de vida, uma espécie de batimento cardíaco moral num mundo anestesiado.
Carol precisa se vigiar porque quando ela perde o controle, milhões podem morrer, o que torna a própria emoção uma zona de alto risco. Esse mecanismo é um achado dramático: transformar a expressão emocional em ameaça coletiva é uma forma brutal de discutir autocensura, culpa e o preço de “ser difícil” numa cultura que idolatra a positividade.
Cores, textura e o “deserto emocional”
A direção visual trabalha com uma sensação constante de limpeza e clareza, como se o mundo tivesse sido higienizado por dentro. Há algo de “apocalipse ensolarado”, espaços amplos, luz dura, vazios que não parecem ruínas, mas esvaziamentos.
Um detalhe sobre a estética de Pluribus é a herança do “mapa visual” do universo Gilligan, com paisagens abertas, sensação de isolamento, e uma paleta que dialoga com secura e deserto. A diferença é que aqui a câmera tende a ser mais controlada, menos “nervosa”, uma estabilidade que combina com a premissa. Quando a humanidade converge para uma só mente, até a imagem parece perder urgência.
Na prática, as cores funcionam como um semáforo emocional. Os momentos “Joined” costumam soar mais claros, suaves, quase terapêuticos, e essa suavidade vira ameaça. Já as cenas em que Carol tenta sustentar a individualidade frequentemente carregam contrastes mais ásperos, tipo sombra, interior, chuva, objetos, ruídos. A série não precisa gritar que há algo errado, ela deixa o quadro sussurrar.
A série fala sobre arte sem virar palestra
Um ponto que cresce nos episódios finais é a ideia de que o coletivo pode ser eficiente, mas não necessariamente criativo. Isso aparece em diálogos e em subtexto. Como rir de verdade sem surpresa? Como fazer arte onde tudo é consenso? Essa dimensão fica evidente quando a própria Seehorn aponta a ausência de “novos livros” e do espanto como parte do horror daquela felicidade perfeita.
O resultado é uma ficção científica que conversa diretamente com o presente (redes, algoritmos, cultura da concordância automática), sem virar panfleto. Pluribus não diz “isso é sobre X”. Ela provoca: e se o futuro for uma gentileza obrigatória?
Vai ter continuidade?
Sim. A Apple TV+ encomendou Pluribus com pedido de duas temporadas desde a disputa pelo projeto, então o segundo capítulo está garantido.
A má notícia: Vince Gilligan já sinalizou que a segunda parte da série deve demorar, porque a equipe não quer apressar a história após o final da 1ª temporada.
ALERTA DE SPOILERS PESADOS (final e viradas principais)
A partir daqui, a equipe da Rádio VB analisa o final e passagens-chave da 1ª temporada com detalhes.
1) O “paraíso” revela o método: adesão voluntária e ritual
O final abre com a sequência no Peru: Kusimayu recebe uma entrega especial e entra no coletivo por um procedimento em forma de ritual, com vapores e cantos, e, assim que a “adesão” acontece, a encenação de normalidade some.
A cena é crucial porque sugere que o coletivo não depende apenas de contágio, ele está institucionalizando a transformação, e isso muda o jogo moral.
2) Carol e Zosia: intimidade como armadilha (e como necessidade)
A reta final mostra Carol num lugar que ela jurava nunca habitar, um vínculo afetivo com Zosia, sua “chaperone”, a interface humana do coletivo. Quando o episódio final começa, elas já estão “como um casal”.

O romance funciona como alívio e como dispositivo trágico. Carol tenta acreditar que há ali uma pessoa específica, mas Zosia é, ao mesmo tempo, todas as pessoas.
3) A virada mais cruel: a coleta sem consentimento
Quando Carol descobre que o coletivo está avançando para “trazê-la para dentro” sem consentimento, a série muda de marcha e entra o pavor. A sensação de que os Others talvez nem precisem da permissão dela para extrair o que querem de suas células, ligadas aos óvulos congelados.
E o texto acerta em cheio ao mostrar a armadilha linguística: “fazemos isso porque amamos você”, mas esse amor não tem “eu”.
4) Carol vs. Manousos: o espelho invertido
A chegada de Manousos (machete, paranoia, tradução por app) vira um duelo de visões. Ele enxerga os Others como roubo de alma. Carol, já atravessada pelo vínculo com Zosia, resiste à ideia de extermínio. Essa dinâmica de três personagens (Carol, Manousos, Zosia) funciona como eixo do episódio final.

É um espelho elegante do início da série. Antes, Carol era a voz do “não dá pra aceitar”, agora, ela precisa argumentar contra a solução final.
5) O encerramento: a bomba atômica como “solução” e como pergunta
O episódio termina com a imagem que reconfigura tudo. Carol volta e diz “a gente salva o mundo”, e revela que o “cargo” é uma bomba atômica.
O cliffhanger não é só ação, é dilema. Se a mente coletiva for irreversível, “salvar o mundo” pode significar matar o mundo, e isso coloca Carol numa zona moral que Gilligan adora. Não existe saída limpa.