“Desobedientes”, já disponível na Netflix, é um thriller que veste a máscara do mistério adolescente para falar de poder, manipulação e da velha tentação de “consertar” pessoas à força. Ambientada na bucólica Tall Pines, a minissérie acompanha duas jovens que cruzam o caminho de um policial recém-chegado e esbarram na líder controversa de um internato para “adolescentes problemáticos”.
A criação é de Mae Martin, que também protagoniza a minissérie, e vive um policial que transita entre a ingenuidade e o senso de justiça.
Toni Collette, a engrenagem que não falha
Se a trama derrapa quando faz força para acertar, Toni Collette a mantém de pé. Como Evelyn, ela entrega uma personalidade cortante, com um sorriso que induz a acolher, olhar que ameaça, voz que ordena. Sua presença imprime ambiguidade moral em cada cena, seja como guia espiritual, CEO de culto ou diretora pedagógica do inferno, tudo ao mesmo tempo. A performance dá à série a gravidade que o roteiro às vezes tenta apenas enunciar.
Elenco apenas ok
Mae Martin faz de Alex um protagonista vulnerável, um investigador que prefere escutar antes de acusar. Há humanidade em sua curiosidade e um senso de justiça que nunca vira sermão. Sarah Gadon compõe uma Laura elegante e opaca, peça-chave para o avanço do mistério.
No núcleo adolescente, Alyvia Alyn Lind e Sydney Topliffe imprimem energia e nuances que às vezes tenta forçar uma sintonia que não chega a ultrapassar a tela. A amizade soa artificial, em certos momentos, e culpa, raiva e coragem aparecem apenas como elementos culturais da televisão. Pouco convincente, embora se esforce para fisgar a todo custo a audiência. O conjunto da obra tenta oferecer a densidade que Tall Pines sugere, e respirar para além do “caso da semana”, mas a tarefa é árdua.
Boas ideias, alguns soluços
Escrito por Martin (com o showrunning compartilhado com Ryan Scott), o roteiro mira alto ao combinar denúncia do “troubled teen industry” com drama de amadurecimento e suspense conspiratório, mas a falta de profundidade compromete o desenvolvimento da trama. Quando aposta na intimidade, conflitos familiares, a ética de Alex, a simbiose tóxica entre Evelyn e seus discípulos, a série busca encontrar sua melhor versão, e esbarra novamente na superficialidade.
O meio da temporada sofre com o excesso de exposição e conveniências para mover peças no tabuleiro, e o final amarra o essencial para evita respostas fáceis, deixando arestas propositais, mas o artifício soa como uma tentativa desesperada de salvar o roteiro, que se enforca com a própria engrenagem desajustada.
Direção: atmosfera em primeiro plano
A direção liderada por Euros Lyn (com episódios assinados também por Renuka Jeyapalan e John Fawcett) privilegia clima e textura: luz fria, corredores assépticos, natureza como presídio a céu aberto. Há elegância na gramática visual. A montagem sugere mais do que mostra, com set-pieces econômicas, porém tensas. Ponto positivo.
Quando a câmera cola em Collette, a encenação ganha um pulso quase litúrgico, e quando se abre para as adolescentes, a mise-en-scène captura o risco eufórico de desobedecer.
Veredito
“Desobedientes” é menos sobre desvendar um grande truque e mais sobre reconhecer os mecanismos que nos fazem aceitar quem promete ordem em troca de liberdade. Podia mais, prometia mais, mas se deixou levar por um caminho escorregadio que a impediu de subir um degrau a mais.
Collette sustenta a produção com folga. O elenco tenta acompanhar, mas falta transpiração, sobra artificialidade. O roteiro e direção, apesar de oscilações, entregam uma experiência envolvente e com algo a dizer. Se tivesse aparado alguns didatismos no miolo, estaria num patamar ainda maior. Como está, é um thriller acomodado, embora atmosférico, e frígido.
Nota: ★★☆☆☆ 6,0/10