Em 16 de outubro de 1923, dois jovens em Los Angeles abriram o Disney Brothers Cartoon Studio. Um século e dois anos depois, The Walt Disney Company é, além de um estúdio, um dicionário emocional compartilhado por várias gerações.
A trajetória começa com uma aposta técnica e narrativa: som sincronizado em Steamboat Willie (1928), Technicolor em Silly Symphonies (com Flowers and Trees, 1932) e a ousadia de lançar o primeiro longa-metragem animado de grande impacto, Snow White and the Seven Dwarfs (1937). A partir daí, animação deixou de ser interlúdio para virar cinema de prestígio, e de bilheteria.
Mickey Mouse é o fio condutor dessa história. Nascido como anti-heroizinho travesso e depois lapidado como símbolo de otimismo, ele transcende mascote: tornou-se logotipo vivo da empresa e senha afetiva para entrar num mundo de regras próprias. Ao lado dele, personagens como Pato Donald, Pateta, Minnie e Pluto criaram o “elenco residente” da casa; princesas e vilões inauguraram um melodrama de contornos universais; e, mais tarde, a integração com Pixar refinou a gramática emocional do estúdio com a lógica do “riso + lágrima”.

Décadas marcaram fases distintas. A Era de Ouro (anos 30/40) consolidou a linguagem; os anos 50/60 expandiram para TV e parques com a invenção da Imagineering e a abertura da Disneyland (1955); os anos 90 protagonizaram o Renascimento (A Bela e a Fera, Aladdin, O Rei Leão), quando musicais animados se tornaram eventos culturais. No século XXI, a companhia ampliou o escopo com aquisições estratégicas — Pixar (2006), Marvel (2009), Lucasfilm (2012) e ativos da Fox (2019) —, integrando universos narrativos que dominaram o cinema comercial e reconfiguraram o calendário global de estreias.
Os parques temáticos transformaram a ideia de entretenimento em imersão física. Roteiros, cenografia e tecnologia viraram arquitetura da experiência. A fantasia ganhou topografia, com castelos, lands e rides, e a palavra “Imagineer” virou profissão. É a realização concreta de um princípio que Walt repetia: “entretenimento como hospitalidade”. Nos últimos anos, a aposta migrou também para o digital, com o Disney+, e para estratégias de franquia que costuram cinema, TV, jogos, produtos e parques numa mesma malha narrativa.
A Disney também atravessou debates e crises. Greves e tensões trabalhistas históricas (como a de 1941), momentos de desgaste criativo, discussões sobre representação e homogeneização cultural. O centenário e seus desdobramentos mostraram uma empresa que tenta atualizar cânones, revisitando clássicos, ampliando repertórios de protagonistas e dialogando com novas sensibilidades — sem romper com o coração do negócio: contar histórias que funcionem em qualquer idade.
No plano simbólico, o legado mais duradouro talvez seja este: a Disney ensinou o mundo a organizar a infância (e a memória infantil) como narrativa. Do assobio do Mickey no barco a vapor às maratonas de franquias galácticas, a companhia criou rituais de família, paisagens sonoras e imaginários partilhados que sobreviveram à mudança de mídias, do celuloide ao streaming. Por isso, celebrar 102 anos é reconhecer uma influência que vai do close de uma lágrima animada ao design de uma cidade-parque.
Se Mickey é o símbolo, o método é o verdadeiro motor. Tecnologia a serviço de emoção, e emoção a serviço de pertencimento. É assim que a Disney atravessou as décadas, alinhando invenção técnica, timing comercial e sensibilidade popular, e segue disputando o futuro com a mesma pergunta simples que a fundou: que história a gente conta hoje para, amanhã, parecer que sempre existiu?