Num mundo em que a humanidade virou uma colmeia de felicidades compulsórias, resta a uma “imune” (vivida com nervo por Rhea Seehorn) decidir se vale a pena salvar o livre-arbítrio. Nos dois primeiros episódios de Pluribus, Vince Gilligan (criador de Breaking Bad e Better Call Saul) troca o crime pela ficção científica existencial sem abrir mão da tensão moral que o consagrou. O resultado? Um início hipnótico, desconfortável e cheio de perguntas que você vai querer ver até a última resposta.
Desde o início, Pluribus confirma que Gilligan não está repetindo fórmulas anteriores, ainda que a assinatura estilística esteja lá. O enredo apresenta um mundo em que quase toda a humanidade foi transformada por um vírus ou agente externo que a torna feliz, pacífica, unificada. Somente uma casta muito pequena de “imunes” permanece responsável por resistir ou interagir com essa nova realidade.
Os dois episódios iniciais funcionam como um primeiro ato de revelação: eles estabelecem o “novo normal” da humanidade, o quão absurdo, e ao mesmo tempo ameaçador, é esse mundo de felicidade forçada, e colocam a personagem de Rhea Seehorn, Carol Sturka, como o ponto de tensão. A atmosfera traz mistério, desconforto (mesmo que a “felicidade” seja o tema), além de questionamentos existenciais: o que significa individualidade, liberdade, responsabilidade?
Visualmente, há alusões aos trabalhos anteriores de Gilligan, como locações em Albuquerque, estilo de câmera que privilegia a angústia, e ritmo que oscila entre drama pessoal e escala global.
Por outro lado, percebe-se algumas pequenas fragilidades, tipo a exposição de ideias (“o mundo mudou”, “você está imune”) ocorre de maneira relativamente direta para não perder tempo, o que é compreensível, mas corre o risco de simplificar demais a complexidade que o tema pode oferecer. Além disso, a premissa “o mais infeliz dos seres humanos tem que salvar o mundo da felicidade” embora instigante, exige que o roteiro sustente uma dose de originalidade para não se tornar apenas “mais um apocalipse invertido”.
Atuação de Rhea Seehorn
Esse é talvez o ponto mais sólido até agora. Rhea Seehorn, que muitos fãs conheceram como Kim Wexler em Better Call Saul, assume aqui uma personagem muito diferente. Carol é autônoma, vulnerável, perturbada, resistente. O arco de emoção nos episódios 1 e 2 exige que ela navegue entre a ironia (“sou a mais infeliz da Terra”) e a urgência de um “salvamento”, mesmo que ela não veja bem por que ou se quer fazê-lo.
Seehorn exibe sutileza em momentos de silêncio e exterioriza bem o conflito interno: ela observa a nova realidade com descrença, reage com raiva ou incredulidade, e ao mesmo tempo carrega culpa, por sobreviver, por ter que agir. Essa combinação a coloca como centro de gravidade da trama. Vê-la em cenas de isolamento, ou sendo confrontada por membros da “hive-mind” da felicidade, gera empatia e tensão.
No entanto, há também espaço para crescimento. A personagem, até aqui, está mais reagindo ao mundo do que agindo profundamente para moldá-lo, o que é lógico na fase inicial, mas para que Pluribus se sustente, a atuação precisará evoluir para além do desconforto e se mover para transformação ativa.
O que esperar dos próximos episódios
Considerando que a temporada 1 foi encomendada com nove episódios, e que a estratégia de lançamento é dois de uma vez e depois semanalmente, há margem para Gilligan e equipe expandirem a mitologia, aprofundarem personagens secundários e atirarem com força as consequências da premissa. Alguns pontos que devem ganhar força:
-
Exploração da “hive-mind” da felicidade: até agora, vemos a transformação e parte da estrutura. Nos episódios seguintes, espera-se que a série investigue mais a fundo como funciona o coletivo, quais são seus valores, resistências e falhas.
-
Expansão dos imunes: Carol não está sozinha. Saberemos mais dos outros imunes, seus traumas, motivações e como lidam com o fato de estarem fora do “grupo”. Esse contraste será central para a tensão narrativa.
-
Conflitos éticos/políticos: a ideia de uma humanidade feliz, uniforme, sem ambição ou conflito, já soa utópica, mas também aterrorizante. A série deverá explorar se a “felicidade” imposta é suprimida em liberdade, em diversidade, e o que isso significa para o humano.
-
Ação e risco crescente: dada a assinatura de Gilligan, não será apenas um drama filosófico. Podemos esperar reviravoltas, traições, perigo real. Os dois primeiros episódios colocaram terreno; agora a escavação vem.
-
Estilo visual e narrativo: fica a expectativa para mais experimentação de câmera, ritmo, gênero. Talvez episódios que desafiem convenções de narrativa linear, pois a premissa convida ao inusitado.
Considerações
Pluribus dá um ótimo pontapé inicial: originais, ambiciosos, com uma protagonista forte e um criador estabelecido. Combina a familiaridade de Gilligan (temática de transformação, moralidade, tensão individual x coletivo) com uma virada de gênero (do crime para a ficção-científica existencial). Isso o torna interessante tanto para quem já é fã de seu trabalho quanto para quem busca algo novo.
Seehorn brilha e o mistério está bem calibrado, até o momento. O grande desafio será manter o equilíbrio entre ideia e execução nos episódios intermediários, tornar radical a ideia central sem perder empatia, e garantir que o espetáculo se transforme numa jornada e não apenas numa premissa interessante.
Até agora, a série parece ter potencial para causar impacto. Resta ver se o “salvar o mundo da felicidade” será tão satisfatório quanto o “salvar o mundo do mal” costuma ser.
Se você gosta de ficção especulativa com profundidade emocional e um toque de estranheza, Pluribus promete. Vamos acompanhar.