No dia 4 de julho de 1865, o mundo literário foi introduzido a um universo subterrâneo de lógica invertida, criaturas excêntricas e enigmas sem solução com a publicação de As Aventuras de Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll — pseudônimo de Charles Lutwidge Dodgson. Um século e meio depois, a menina que cai na toca do coelho branco continua a encantar e desconcertar leitores de todas as idades. Aos 160 anos, Alice não envelheceu: tornou-se atemporal.
O livro, muitas vezes catalogado como infantil, está longe de ser apenas um conto de fadas. Seu autor, matemático e lógico da era vitoriana, criou uma obra que subverte com maestria os códigos do senso comum, os rituais sociais britânicos e até mesmo as regras da própria narrativa. O nonsense aqui não é apenas uma estética, mas uma provocação filosófica: o que é o real, senão aquilo que entendemos como tal?
Uma travessia além da infância
Carroll escreveu o texto para entreter Alice Liddell, filha de um colega da Christ Church, em Oxford. Mas a história logo escapou das margens do Tâmisa e se inscreveu na tradição do surrealismo bem antes dos surrealistas. A rainha de copas, o Chapeleiro Maluco, a Lagarta azul e o Gato de Cheshire passaram a habitar não só os sonhos infantis, mas também os devaneios adultos — de Freud a Dalí, de Joyce a Lennon.
Não à toa, Alice foi apropriada por diferentes movimentos contraculturais, especialmente a partir dos anos 1960. A viagem pelo País das Maravilhas passou a ser lida como metáfora para estados alterados de consciência, abrindo espaço para uma camada lisérgica de interpretações. O coelho apressado virou símbolo da fuga da realidade e a poção que encolhe Alice alimentou metáforas sobre a experiência subjetiva com o tempo e o espaço.
Alice no cinema: do traço ao delírio
As adaptações para o cinema são inúmeras, e cada uma tenta, à sua maneira, capturar a fugidia essência do livro. A versão animada da Disney, de 1951, tornou-se referência visual e sonora, ainda que suavize a complexidade do texto original. A estética colorida e a música da animação encantaram o público, mas também o domesticaram.
É apenas com Alice in Wonderland (2010), de Tim Burton, que se retoma a radicalidade imagética da obra de Carroll. Sob direção do cineasta gótico-pop e com Johnny Depp no papel do Chapeleiro Maluco, o filme propõe uma leitura sombria e madura do universo de Alice.

Burton propõe uma leitura sombria e madura do universo de Alice (Foto: Divulgação)
Burton não adapta o livro ao pé da letra — na verdade, sua Alice é uma jovem adulta que retorna ao País das Maravilhas como se retornasse ao inconsciente.
O visual do filme mistura expressionismo alemão, psicodelia digital e dark fantasy. Depp constrói um Chapeleiro que flutua entre a loucura e a melancolia, enquanto Helena Bonham Carter encarna uma Rainha de Copas grotesca e cômica, grotescamente cômica. Anne Hathaway, por sua vez, faz da Rainha Branca uma figura etérea e quase ausente, como se estivesse anestesiada pelo próprio mundo fantástico.
Se na versão animada a estranheza é suavizada, no filme de Burton ela é amplificada — a lógica do absurdo vira estética do caos.
A permanência do espelho
A força de Alice no País das Maravilhas reside no seu poder de reinvenção. A obra ultrapassou o papel e virou ícone: estampou camisetas, inspirou letras de música (como White Rabbit, do Jefferson Airplane), rendeu análises filosóficas e psicológicas, virou HQ, musical, instalação artística. Alice é personagem, mas também conceito: representa a travessia, a dúvida, o estranhamento.
Em uma cultura cada vez mais marcada pela fragmentação, pelo excesso de informações e pelo colapso do sentido, Alice talvez seja mais atual do que nunca. Afinal, vivemos tempos em que a realidade parece saída de um sonho esquisito — ou de um pesadelo polido por emojis. O absurdo, hoje, já não é mais exceção; é cotidiano.
Lewis Carroll não escreveu um manual de moralidade, mas uma fábula ambígua que se renova a cada geração. E talvez seja isso que mantenha Alice viva: sua recusa em oferecer respostas claras, sua entrega radical ao enigma. Nessa sexta-feira, ao completar 160 anos, ela continua a nos conduzir por tocas de coelho que terminam não em finais felizes, mas em perguntas desconcertantes.
Como diria o Gato de Cheshire: “Somos todos loucos aqui”. E, no fundo, é justamente por isso que seguimos voltando ao País das Maravilhas.