No coração de Liverpool, entre as curvas silenciosas da Menlove Avenue e os ventos suaves da Beaconsfield Road, repousa um dos lugares mais enigmáticos da mitologia moderna: Strawberry Field. Muito antes de virar música, o nome já era símbolo. Não de glória ou fama, mas de refúgio. Era ali, nos jardins de um orfanato do Exército da Salvação, que o pequeno John Lennon encontrava algo que lhe escapava em casa — um mundo onde o barulho da infância misturava-se com a música de uma banda de metais e a ideia abstrata de liberdade.
O local foi inaugurado como abrigo infantil em 1936, numa mansão vitoriana cercada por árvores, histórias e silêncios. Nos verões da infância de Lennon, aquele espaço ganhava cor com festas no jardim, crianças correndo descalças, sorrisos passageiros. “Mimi, vamos. Vamos nos atrasar”, ele dizia à tia, impaciente para atravessar a cerca dos fundos e se perder entre as vozes e a música. Não era apenas um orfanato. Era um santuário pessoal. Um território onde o garoto órfão de afeto se tornava apenas mais uma criança entre outras.
Décadas depois, em 1967, esse universo secreto explodiria nas rádios do mundo. Strawberry Fields Forever — uma canção que não busca ser compreendida, mas sentida. Sua letra labiríntica, quase onírica, é a tradução musical daquele abrigo da alma: “Nothing is real, and nothing to get hung about...”. Em pleno auge da psicodelia e do experimentalismo dos Beatles, Lennon oferecia não apenas uma canção, mas uma chave. Uma entrada melancólica ao lugar onde tudo começou e onde nada era real o suficiente para doer.
A composição marcou a virada estética da banda: do pop ensolarado para o surrealismo sonoro. Mellotron, cítara, camadas sobre camadas de gravação — não era somente música, era uma viagem. E ao mesmo tempo, um recuo. Um retorno. O Strawberry Field de 1967 é um eco diluído daquele campo da década de 40, atravessado por pés infantis, onde a perda e a esperança dançavam lado a lado.
Após o fechamento do orfanato em 2005, os portões vermelhos tornaram-se altar. Peregrinação. Símbolo. Roubados uma vez, devolvidos à história, reinstalados. As grades não guardam mais crianças, mas memórias. Desde 2019, os jardins estão abertos ao público. Hoje, há uma exposição interativa, um centro de treinamento para jovens com necessidades especiais, um mellotron virtual — tecnologia que se esforça para tocar um som que nasceu da ausência.
Strawberry Field é, antes de tudo, uma paisagem interior. Um mapa de saudades, traumas e invenção. Ali repousa a infância perdida de um Beatle que passou a vida buscando reconexão. E o curioso é perceber que, enquanto o orfanato servia para acolher crianças sem lar, a canção serviu para abrigar gerações sem chão. Há, nessa sobreposição, uma beleza quase mística. A arte devolvendo abrigo ao que foi arrancado.
Na encruzilhada entre a história e a lenda, entre a dor pessoal e a mitologia pop, Strawberry Field permanece. Vermelho. Vivo. Silencioso e cheio de som. Um lugar onde Lennon não apenas esteve — mas onde, de certo modo, ainda está.