Ouvimos: "Send A Prayer My Way" é uma oração queer à beira do deserto
Álbum apresenta canções para quando o silêncio não basta, em um country de travessia e confissão.
Por LockDJ
Publicado em 01/07/2025 16:03 • Atualizado 01/07/2025 16:06
Música
Julien Baker e Mackenzie Scott cantam entre o pó da estrada e a fita que se apaga (Foto: Divulgação)

Julien Baker e Mackenzie Scott sempre habitaram regiões limítrofes do indie rock: guitarras que sussurram em vez de urrar, letras que funcionam como confissão sem cair no vitimismo. No álbum Send a Prayer My Way elas cruzam a fronteira simbólica rumo ao country — não pela via do pastiche, mas pelo caminho torto em que Patsy Cline encontra PJ Harvey num posto de gasolina da I-40. O resultado não é um disco “alternativo” com pedal-steel de cortesia; é country no seu sentido mais antigo: canções sobre deslocamento, perda e tentativa de redenção, reconstruídas a partir de vozes que tradicionalmente ficaram fora do honky-tonk.

 

O single “Sugar in the Tank” abre com um riff solar que remete à era Tom Petty & the Heartbreakers, mas a letra destila ironia sobre sonhos adulterados na estrada — metáfora perfeita para duas artistas queer que enfrentam trincheiras duplas no Sul dos EUA. No refrão, o backing vocal de Scott harmoniza com a voz cristalina de Baker, como se Gram Parsons e Emmylou ganhassem uma atualização queer em Dolby Atmos.



É o single mais direto e contagiante do disco. Rock rural, quase radiofônico, mas com a acidez poética que ambas as artistas cultivam. A canção parece subverter o gesto de abastecer — aqui, o combustível é doce, mas sabotado. A melodia evoca o alt-country dos anos 90 com roupagem confessional.

 

Outras faixas reafirmam o alcance do disco:

  • “Dirt”

    Faixa de abertura que já demarca o tom do álbum: harmonia vocal crua, guitarras arranhadas e uma lírica que remete à matéria e ao luto. É como se o sul profundo ganhasse uma lente íntima e existencialista. Julien e Torres caminham juntas entre o peso da terra e a leveza da memória.


    “Bottom of a Bottle”

    Um clássico instantâneo de bar vazio às 3 da manhã. A estrutura simples sustenta versos sobre escapismo, recaídas e tentativa de recomeço. É aqui que o disco soa mais honesto, vulnerável e melodicamente próximo de nomes como Lucinda Williams ou Jason Molina.


    “Tape Runs Out”

    Quase um interlúdio emocional, essa faixa invoca a ideia de fim — de um relacionamento, de um ciclo, de uma gravação. Sintetizadores discretos e harmonias vocais geram uma atmosfera suspensa, melancólica, em que o country cede espaço ao minimalismo alternativo.


    “Goodbye Baby”

    Última faixa do álbum, funciona como uma carta não enviada. A voz de Torres parece suspensa no tempo, enquanto Julien insinua com acordes que a estrada continua. Encerramento ideal para um disco sobre transições, paisagens e identidade: o adeus é sussurrado, mas ressoa longe

 

A produção assinada pelo duo — com toques de John Congleton — mantém texturas cruas. Bateria é seca, quase demo, enquanto lap-steel e dobro entram pontualmente, nunca para embelezar demais. A mix privilegia espaço: cada palavra de Baker e Scott ecoa como se fosse pronunciada num celeiro vazio.

 

Há certa intencionalidade didática: mostrar que a linhagem-country já foi mais fluida do que a versão plastificada de Nashville permite. Ao reivindicarem lugar como cantoras queer, as duas conectam tradição e transgressão sem cair no manifesto panfletário. Fazem isso sobretudo compondo refrões que qualquer truck-stop jukebox entenderia — exatamente a lição de Willie Nelson, Dolly Parton ou Kacey Musgraves em seus momentos de ruptura.

 

Send a Prayer My Way não renega o pathos confessional dos discos solo de Baker nem a pegada art-rock de Torres; apenas desloca essas marcas para uma moldura de twang. É uma reverência crítica: reconhece fantasmas (Johnny Cash, Lucinda Williams) e ao mesmo tempo abre espaço para outras narrativas marginalizadas. Se o country é, por definição, música de estrada, Baker e Scott ampliam a pista com novos acostamentos identitários — sem perder o cheiro de gasolina, grama cortada e cerveja morna.

   

⭐⭐⭐ Nota: 9/10

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