A travessia sugerida por Naus começa muito antes de a primeira faixa tocar. O disco nasceu no isolamento pandêmico de 2020-21, quando Vinícius Cantuária (o amazonense radicado em Nova Iorque) trocava ideias com Zeca Baleiro (o maranhense inquieto) por mensagens e arquivos digitais. Desse diálogo à distância surgiram 14 composições — 11 delas ancoradas neste álbum de 40 minutos que, apesar do título náutico, mira horizontes mais interiores do que geográficos.
O abre-alas “Relento” funciona como cartão de embarque: vozes entrelaçadas sobre beats discretos anunciam que a viagem será guiada pela delicadeza. Em “Sal da Beleza”, baixo de Dadi e violão pizzicato de Rogério Delayon temperam uma canção que parece misturar maresia com a cadência do reggae (um perfume recorrente na obra de Baleiro).
O ponto de virada chega com a faixa-título. A participação do japonês Ryuichi Sakamoto — num piano de toques mínimos, quase sussurrados — instala uma atmosfera cinematográfica que aproxima a canção de um lamento jazzy, lembrando o gosto de Cantuária por trilhas sonoras. É o momento em que Naus deixa de ser apenas coleção de canções e se transforma em experiência sonora.
A dupla exibe versatilidade ao alternar paisagens. “Alma Bossa Nova” revisita a batida que João Gilberto exportou para o mundo, mas com timbres eletrônicos que atualizam o gênero sem desrespeitá-lo. Já “Flores de Invierno” traz versos em espanhol e acena às andanças latino-americanas de Cantuária, enquanto “Chuva na Guanabara” devolve o ouvinte ao Rio com acordes que flertam com o samba-canção.
Há espaço também para o realismo mágico nordestino. Em “O Dia em que Jeremias Vaqueiro Viu o Mar Pela Primeira Vez”, o órgão de Flávio Venturini colore uma pequena crônica musical de pouco mais de dois minutos, tão imagética que dispensa clipe. “Flor do Beijo”, reforçada pelo trombone de Tiquinho, injeta humor num baião que poderia ter saído dos discos de Jackson do Pandeiro. E “Praia” dilata o tempo: quase cinco minutos de contemplação, como se o mar estivesse adiante e o fim da pandemia, finalmente, ao alcance.
Produzido pelos próprios autores, o álbum tem estética artesanal: sintetizadores domésticos convivem com sopros gravados em estúdio, e percussões orgânicas rimam com programações sutis. O processo é detalhado no mini-doc Naus.doc (três episódios), que registra conversas, ajustes melódicos e pequenos choques criativos — prova de que a parceria se fez de escuta mútua, não de egos em disputa.
No saldo, Naus confirma que duas trajetórias consolidadas podem ainda surpreender quando se permitem vulnerabilidade. Cantuária aporta a sofisticação harmônica de quem assimilou Nova Iorque; Baleiro, a inquietação pop que nunca cabe num só rótulo. Juntos, entregam um disco que soa íntimo, quase confessional, mas sem cair em melancolia. É música-porto: convida à partida, mas também oferece abrigo.
⭐⭐⭐⭐ Nota: 9/10