No dia 14 de julho de 1977, Elvis Costello subia ao palco pela primeira vez em carreira solo, marcando o início de uma trajetória que cruzaria o punk, o pub rock e a new wave britânica. À época, a cena londrina fervilhava com a energia dos Sex Pistols e o desencanto social em forma de riffs. Costello, porém, surge como um corpo estranho: letras densas, estrutura clássica e uma sonoridade que unia amargura romântica e crítica política.
Quase duas décadas depois, em um movimento que desafiava as expectativas, ele se tornaria mundialmente conhecido por um de seus registros mais delicados: a releitura da canção “She”, originalmente composta por Charles Aznavour e Herbert Kretzmer. A gravação de Costello foi escolhida como tema principal do filme Um Lugar Chamado Notting Hill (1999), marcando a relação entre o livreiro William Thacker (Hugh Grant) e a estrela de cinema Anna Scott (Julia Roberts). Longa está disponível no catálogo da Prime Vídeo e Telecine.

Julia Roberts e Hugh Grant em cena clássica do filme (Foto: Divulgação)
No longa dirigido por Roger Michell, She é mais que trilha sonora — ela atua como espelho emocional dos personagens. A letra ecoa a idealização de uma mulher multifacetada, inalcançável e profundamente humana. A interpretação de Costello é contida, introspectiva, quase resignada, em consonância com o dilema de Thacker, que se vê dividido entre a realidade da vida comum e o impacto de amar alguém que parece viver em outro mundo.
O uso da música no filme transformou “She” em uma ponte entre gerações e linguagens: do chanson francês ao cinema pop britânico, da solidão dos palcos punk ao sentimentalismo urbano dos anos 1990. É uma síntese do poder narrativo de Costello: atravessar estilos sem perder identidade, falar de amor sem cair no banal, carregar na voz a ironia, o cansaço e o encanto da experiência.
Quarenta e oito anos depois da estreia nos palcos, Elvis Costello segue como referência de elegância estrutural, lirismo amargo e construção de atmosferas sonoras. She, em sua voz, permanece como um dos momentos mais universais da sua discografia — talvez por dizer menos sobre uma mulher ideal e mais sobre a complexidade de quem olha, sente, recorda e aceita não compreender tudo.