A canção “Fátima”, adotada pela banda Capital Inicial, é um daqueles relicários poéticos da geração oitentista que ainda pulsa com inquietação. Escrita originalmente por Renato Russo nos tempos do Aborto Elétrico, a letra traduz a agonia de um país mergulhado em contradições políticas, sociais e espirituais. É uma música que nasce do milagre, mas se nutre da dúvida.
Lançada posteriormente pelo Capital Inicial, a faixa é herdeira de um momento tenso da cena de Brasília. Após a dissolução do Aborto Elétrico, suas composições foram repartidas entre dois rumos musicais distintos, mas igualmente emblemáticos: o Capital (com os irmãos Fê e Flávio Lemos) e a Legião Urbana (com Renato Russo). “Fátima” ficou com o Capital, mas sua alma — ou seu grito — ainda traz a digital de Renato.
Inspirada pela aparição da Virgem Maria em Fátima, Portugal, em 1917, quando três crianças relataram visões da santa, a canção desloca o episódio de fé para uma dimensão urbana e crítica. A letra não faz uma celebração do milagre, mas o problematiza: “Três crianças sem dinheiro e sem moral / Não ouviram a voz suave que era uma lágrima”. Aqui, o sagrado se encontra com o abandono social. Não há redenção fácil. O sofrimento é coletivo, mas a solução não está no céu — e sim na ação, na responsabilidade de quem caminha entre escombros.
Ao evocar esse milagre católico, a música sugere que a fé, por vezes, funciona como anestesia: um tipo de fuga diante da realidade insuportável. Fátima, então, vira símbolo não apenas da aparição divina, mas da ausência de transformação concreta: “Ela talvez tivesse um nome e era: Fátima”. Um nome que ecoa, mas que não muda o mundo.
Musicalmente, a composição é urgente e direta — herança do punk, com riffs secos e pulsação de protesto. Flávio Lemos assina a melodia, criada em um ensaio da banda que ainda era uma usina de ideias e indignação juvenil.
Ao invés de louvar, “Fátima” tensiona. Ela encara o milagre com olhos arregalados, denuncia a desigualdade que ignora crianças pobres, critica a religião quando se transforma em desculpa para a inércia. É uma oração punk, suada, feita de contradições. E talvez seja justamente isso que a torne tão poderosa: sua santidade está em nos lembrar que esperar por um milagre pode ser o maior pecado.
Abaixo, um registro caseiro de "Fátima", cantada por Renato Russo, ainda à frente do Aborto Elétrico.